Disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente abrasadora, põe-na sobre uma haste, e será que todo mordido que a mirar viverá. Fez Moisés uma serpente de bronze e a pôs sobre uma haste;sendo alguém mordido por alguma serpente,se olhava para a de bronze, sarava. (Nm 21,8-9).
Primeiramente, devemos encontrar a definição para a palavra serpente citada em Gênesis. Kardec, em esclarecendo sobre o seu significado, disse:
“A palavra nâhâsch existia antes da língua egípcia, com o significado de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom do encantamento e da adivinhação. Foi talvez por isso também que as esfinges, de origem assíria, eram representadas com a figura de um negro”.
“Não foi senão na versão dos Setenta – que, segundo Hutcheson, corromperam o texto hebreu em muitos lugares, - escrita em grego no segundo século antes da era cristã, que a palavra nâhâsch foi traduzida para serpente. As inexatidões dessa versão, sem dúvida, prendem-se às modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo; porque o hebreu do tempo de Moisés era então uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos”. (KARDEC, A. A Gênese, p. 219).
Até hoje não conseguimos entender o porquê dos teólogos estarem sempre relacionando, no episódio da tentação de Eva, a serpente a satanás. Isso para nós é muito estranho, pois, sabendo que Jesus nos recomenda sermos “prudentes como as serpentes” (Mt 10,16), fato que torna sem sentido algum essa relação. Quem admitir a correlação entre a serpente e satanás fatalmente estará colocando Jesus numa situação insustentável, já que Ele, ao nos recomendar ter essa qualidade da serpente, estará admitindo que satanás também possui a qualidade da prudência? E, além disso, não sabemos por que cargas-d’água de contínuo colocam essa palavra (serpente) com a inicial maiúscula, o que veementemente repudiamos; por isso nós sempre a escrevemos com letra minúscula mesmo, deixando para usar maiúscula apenas quando estamos nomeando a divindade.
Ao se referir à serpente como o mais astuto de todos os animais (Gn 3,1), é porque ela agiu de moto próprio; portanto, não foi usada por ninguém para dizer o que disse, abstraindo-se da questão de que esse animal não fala. “É, pois, provável que Moisés entendesse, por sedutor da mulher, o desejo indiscreto de conhecer as coisas ocultas suscitadas pelo Espírito de adivinhação...” (KARDEC, A. A Gênese, p. 220).
Mas Kardec, ao fazer suas considerações sobre esse versículo, disse:
“A serpente está longe de passar hoje pelo tipo da astúcia; está, pois, aqui, com relação à sua forma antes que pelo seu caráter, uma alusão à perfídia dos maus conselhos que deslizam como a serpente, e nos quais, freqüentemente, por essa razão, não se confia mais. Aliás, se a serpente, por ter enganado a mulher, foi condenada a rastejar sobre o ventre, isso queria dizer que ela antes tinha pernas, e, então, não era mais uma serpente. Por que, pois, impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, alegorias tão evidentes, e que, em fazendo seu julgamento, se faz com que, mais tarde, olhem a Bíblia como um enredo de fábulas absurdas?” (KARDEC, A. A Gênese, p. 219)
Aliás, estamos cansados de ouvir pessoas dizerem que satanás é o pai da mentira; entretanto, contrariamente, tudo quanto à serpente disse foi verdade. Vejamos:
- Ao dizer que “É certo que não morrereis” (Gn 3,4) a serpente falou absolutamente a verdade, pois o casal continuou vivo;inclusive, relata-se que Adão viveu até completar 930 anos (Gn 5,5).
Observar que “Adão (haadam) é a personificação da Humanidade, sua falta individualiza a fraqueza do homem, em que predominam os instintos materiais, aos quais não sabe resistir” (KARDEC, A. A Gênese, p. 218).
- Ao explicar o porquê de Deus proibir que comessem do fruto da árvore, ela, a serpente, disse a Eva: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,5), exatamente como acontecido, pois os olhos de ambos se abriram (Gn 3,7) e passaram a ser conhecedores do bem e do mal como Deus, uma vez que se afirma “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal” (Gn 3,22)
Lembrando que “a árvore, como árvore da vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência do homem que adquire do bem e do mal para o desenvolvimento de sua inteligência, ...” (KARDEC, A. A Gênese, 218)
Como conseqüência, Deus, temendo que o casal comesse do fruto da árvore da vida e que se tornasse igualmente imortal, expulsa-o do jardim do Éden (Gn 3,22) onde, conseqüentemente, a falta de Adão representa a infração da lei de Deus e a vergonha de Adão e Eva, ante o olhar divino, que é a confusão do culpado na presença do ofendido e o suor no rosto, para conseguir sua alimentação, o que representa o trabalho neste mundo que se deve ter para alcançar o progresso que é através do trabalho.
Quanto à questão do “tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19), na verdade, era algo que Adão já devia saber, uma vez que, pela narrativa, trata-se apenas de uma explicação e não um castigo como muitos pensam; senão vejamos o versículo na íntegra: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás”. O “castigo” aqui é comer com o suor do rosto, pois se a morte fosse realmente um castigo, estaríamos em sérios apuros para explicar porque os animais e as plantas, que não pecaram, também morrem.
Não podemos também nos esquecer de que se supondo um castigo, ele foi aplicado somente a Adão e considerando que Eva já tinha recebido o seu (as dores do parto), por questão de justiça, não poderia ainda receber o de Adão, já que Adão não recebeu o dela. Não vimos nenhum homem “parir com dor” (graças a Deus!). Por outro lado, se Deus falou mesmo pelos profetas, Jeremias afirmou que “cada um, porém, será morto pela sua iniqüidade” (Jr 31,30) o que Ezequiel reafirmou quando disse “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18,20) e, mais importante ainda, foi confirmado por Jesus “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27).
Muitos estudiosos dizem, com razão, que a maioria das correntes religiosas ditas cristãs é, na verdade, puro “paulinismo” e não cristianismo, pois, para elas, a opinião de Paulo prevalece sob a de Jesus. A esses pegaremos uma de suas opiniões, sobre o assunto de que estamos tratando; leiamo-la: “... a serpente enganou a Eva com a sua astúcia,...” (2Cor 11,3), que, conforme podemos concluir, atribui à própria serpente, e não a satanás, a culpa de ter enganado a Eva.
Não há como aludir a serpente com satanás, pois satã - significa "o adversário", "o acusador". O termo "acusador” existia no Império Persa, cuja função era a de percorrer secretamente o reino Persa e fiscalizar tudo o que estava sendo feito de mal no sentido de apresentar denúncias diante do imperador, que mandava chamar os funcionários faltosos e os castigava. Com a evolução da doutrina religiosa judaica, satã acabou se convertendo, de um acusador dos pecados dos homens, num deus secundário, oposto a Javé. Satã não é Lúcifer mencionado em Isaías 14,12, pois se referia ao Rei da Babilônia, já que a narrativa da passagem inicial do capítulo quatorze, assim diz que: “Sentença que, numa visão, recebeu Isaías, filho de Amoz, contra a Babilônia”. (Is 14,1). Sentença que se referia contra a Babilônia e não a um anjo que, inclusive, já houvera caído, segundo os que se apegam à letra que mata. Ele, satã, não é um anjo que se revoltou contra o Senhor. Ele é apenas um acusador, ou seja, um dos olhos do Senhor, que anda pela Terra e comparece perante o Senhor para acusar e não se opor contra Javé.
Não poderemos deixar de citar uma outra passagem interessante onde, segundo o relato bíblico, o próprio Deus recomenda que se coloque num poste a imagem de uma serpente. Quem quiser comprovar é só ler Nm 21,8-9. Naquela ocasião, ainda no deserto, os hebreus chegaram a uma região infestada de serpentes venenosas, que ingenuamente atribuíram a um castigo de Deus. A serpente de bronze feita por Moisés, segundo recomendação divina, serviu como meio de cura das pessoas que foram mordidas, que, após olharem para a serpente de bronze, ficavam curadas. Essa imagem da serpente de bronze foi objeto de adoração pelo período de cerca de 700 anos. Esta mesma serpente, levantada no deserto por Moisés, veio a ser mencionada por Jesus, quando este esteve com o Sacerdote Nicodemos “... E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado,” (João 3:14), fazendo a alusão de que Ele, Jesus, viria a ser elevado no madeiro, predizendo a sua crucificação.
Curiosamente ela é o símbolo da medicina, que é representado por duas serpentes enroladas num poste e o da farmácia que é uma serpente enrolada numa taça; em ambos representa o poder da cura.
Referência bibliográfica
Bíblia Pastoral – São Paulo: Paulus, 1990.
KARDEC, A. A Gênese, Araras – SP: IDE, 1993.