Jesus não fundou uma Igreja, em vida. A passagem invocada para isso, em Mateus, segundo Hans Kung, teólogo suiço, é um dos textos mais controvertidos do Novo Testamento. O objetivo único da Igreja, hoje, seria o de servir à causa do Cristo, ou pelo menos, não obstruí-la, mas defendê-la, efetivá-la, concretizá-la no espírito de Jesus Cristo na sociedade moderna.
Não há uma Igreja - no sentido de ekklesia (assembléia, congregação) a não ser num contexto dinâmico. Não existe Igreja somente porque algo foi, certa vez, instituído, fundado e permanece sem alterações. Hans Kung suscita, igualmente, o aspecto da legitimidade e coloca três perguntas impactantes: Justifica-se o primado de Pedro? Deve esse primado persistir? O Bispo de Roma é o herdeiro do primado de Pedro?
À vista de tantas complexidades, parece, às vezes, que Jesus é mais popular fora da Igreja do que dentro dela e, para suas autoridades, de vez que, na prática, o dogma e a lei canônica, a política e a diplomacia - mais a política do que a diplomacia - frequentemente desempenham papel mais relevante do que ele (Jesus).
Como se ainda não bastasse, em 1870, através do Concílio Vaticano I, foi proclamada a infalibilidade do papa, ou seja, qualquer semente de dúvida a respeito de doutrina cristã o papa daria a última palavra, como se o papa fosse infalível, o detentor de toda a verdade, o Senhor da Verdade absoluta.
Nos reportemos inicialmente ao Evangelho de Mateus (16:13-20), onde encontramos: "Chegando ao território de Cesaréia de Felipe, Jesus perguntou a seus discípulos: "No dizer do povo, quem é o Filho do Homem"? Responderam: "Uns dizem que é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas." Disse-lhes Jesus: "E vós, quem dizeis que eu sou"? Simão Pedro respondeu: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!" Jesus então lhe disse: "Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto mas meu Pai que está nos céus. E eu te declaro: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus: tudo o que ligares na terra, será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus." Depois ordenou aos seus discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Cristo."
Em 1870, no concílio que decretou o dogma da infalibilidade papal, vários bispos se posicionaram contra tal absurdo, e não foram poucos entre italianos, americanos, alemães, franceses e ingleses, que empenharam seu apoio ao bispo Strossmayer, que perante as maiores dignidades eclesiásticas presentes ao conclave, firmou a sua opinião a respeito de tal decisão. A seguir descrevemos algumas partes do discurso, em meio a impropérios e à revolta dos demais:
"Veneráveis padres e irmãos: (...) Compenetrado da minha responsabilidade, pela qual Deus me pedirá contas, estudei com a mais escrupulosa atenção os escritos do Antigo e do Novo Testamento, e interroguei esses veneráveis monumentos da Verdade: se o pontífice que preside aqui é verdadeiramente o sucessor de São Pedro, vigário do Cristo e infalível doutor da Igreja. (...) Abri essas sagradas páginas e sou obrigado a dizer-vos: nada encontrei que sancione, próxima ou remotamente, a opinião dos ultramontanos! E maior é a minha surpresa quando, naqueles tempos apostólicos, nada há que se fale de papa para sucessor de S.Pedro e vigário de Jesus-Cristo! (...) Lendo, pois, os santos livros, não encontrei neles um só capítulo, um só versículo que dê a São Pedro a chefia sobre os apóstolos. Não só o Cristo nada disse sobre este ponto, como, ao contrário, prometeu tronos a todos os Apóstolos (Mateus, cap. XIX, v. 28), sem dizer que o de Pedro seria mais elevado que o dos outros!
(...) Quando Cristo enviou os seus discípulos a conquistar o mundo, a todos - igualmente - deu o poder de ligar e desligar, a todos - igualmente - fez a promessa do Espírito-Santo.
Dizem as Santas Escrituras que até proibiu a Pedro e a seus colegas de reinarem ou exercerem senhorio (Lucas, XXII, 25 e 26).
(...) se Pedro fosse papa ou chefe dos Apóstolos, permitiria que esses seus subordinados o enviassem, com João, à Samaria, para anunciar o Evangelho do Filho de Deus? (Atos, cap. VIII, v. 14). Que direis vós, veneráveis irmãos, se nos permitíssemos, agora mesmo mandar Sua Santidade Pio IX, que aqui preside, e Sua Eminência, Monsenhor Plantier, ao Patriarca de Constantinopla, para convencê-lo de que deve acabar com o cisma do Oriente? O símele é perfeito, haveis de concordar.
Mas temos coisa ainda melhor: Reuniu-se em Jerusalém um concílio ecumênico para decidir questões que dividiam os fiéis. Quem devia convocá-lo? Sem dúvida, Pedro, se fosse papa. Quem devia presidir a ele? Por certo, Pedro. Quem devia formular e promulgar os cânones? Ainda Pedro, não é verdade? Pois bem: nada disso sucedeu! Pedro assistiu ao concílio com os demais apóstolos, sob a direção de São Tiago! (Atos, cap. XV).
(...) Encarando agora por outro lado, temos: enquanto ensinamos que a Igreja está edificada sobre Pedro, S.Paulo (cuja autoridade devemos todos acatar) diz-nos que ela está edificada sobre o fundamento da fé dos Apóstolos, sob a direção de São Tiago! (Atos, cap. XV).
(...) Esse mesmo Paulo, ao enumerar os ofícios da Igreja, menciona apóstolos, profetas, evangelistas e pastores; e será crível que o grande Apóstolo dos gentios se esquecesse do papado, se o papado existisse? Esse olvido me parece tão impossível como o de um historiador deste concílio que não fizesse menção de Sua Santidade Pio IX.
(...) O Apóstolo Paulo não fez menção, em nenhuma das suas Epístolas, às diferentes Igrejas, da primazia de Pedro; se essa existisse e se ele fosse infalível como quereis, poderia Paulo deixar de mencioná-la, em longa Epístola sobre tão importante ponto? Concordai comigo. A Igreja nunca foi mais bela, mais pura e mais santa que naqueles tempos em que não tinha papa.
(...) Pensei que, se Pedro fosse vigário de Jesus-Cristo, ele não o sabia, pois que nunca procedeu como papa: nem no dia de Pentecostes, quando pregou o seu primeiro sermão, nem no concílio de Jerusalém, presidido por S.Tiago, nem na Antióquia, e nem nas Epístolas que dirigiu às Igrejas. Será possível que ele fosse papa sem o saber?
(...) Que o grande Santo Agostinho, bispo de Hipona, honra e glória do Cristianismo e secretário no Concílio de Melive, nega a supremacia ao bispo de Roma. Que os bispos da África, no sexto Concílio de Cartago, sob a presidência de Aurélio, bispo nessa cidade, admoestavam Celestino, bispo de Roma, por supor-se superior aos demais bispos, enviando-lhes comissionados e introduzindo o orgulho na Igreja.
(...) Deveis saber, meus veneráveis irmãos, que os padres do Concílio de Calcedônia colocaram os bispos da antiga e nova Roma na mesma categoria dos demais bispos.
(...) E, para mais reforçar os meus argumentos, lembrarei aos meus veneráveis irmãos que foi Osio, bispo de Córdova, quem presidiu ao primeiro Concílio de Nicéia, redigindo os seus cânones; e que foi ainda esse bispo que, presidindo ao Concílio de Sardica, excluiu o enviado de Júlio, bispo de Roma! Mas, da direita me citam estas palavras do Cristo - Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.
(...) Julgais, veneráveis irmãos, que a rocha ou pedra sobre que a Santa Igreja está edificada, é Pedro; mas permiti que eu discorde desse vosso modo de pensar.
Diz S. Cirilo, no seu quarto livro sobre a Trindade: "A rocha ou pedra de que nos fala Mateus, é a fé imutável dos Apóstolos."
S. Olegário, bispo de Poitiers, em seu segundo livro sobre a Trindade, repete: Que aquela pedra é a rocha da fé confessada pela boca de São Pedro. E, no seu sexto livro, mais luz nos fornece, dizendo: É sobre esta rocha da confissão da fé que a Igreja está edificada.
S. Jerônimo, no sexto livro sobre S. Mateus, é de opinião que Deus fundou a sua Igreja sobre a rocha ou pedra que deu o seu nome a Pedro.
Nas mesmas águas navega S. Crisóstomo quando, em sua homília 56 a respeito de Mateus, escreve: - Sobre esta rocha edificarei a minha Igreja: e esta rocha é a confissão de Pedro. E eu vos perguntarei, veneráveis irmãos, qual foi a confissão de Pedro?
Já que não me respondeis, eu vo-la direi: "Tu és o Cristo, o filho de Deus." Ambrósio, o santo Arcebispo de Milão, S. Basílio de Salência e os padres do Concílio de Calcedônia ensinam precisamente a mesma coisa.
Entre os doutores da antiguidade cristã, Santo Agostinho ocupa um dos primeiros lugares, pela sua sabedoria e pela sua santidade. Escutai como ele se expressa sobre a primeira epístola de S. João: Edificarei a minha Igreja sobre esta rocha, significa que é sobre a fé de Pedro. No seu tratado 124, sobre o mesmo São João, encontra-se esta significativa frase: Sobre esta rocha, que acabais de confessar, edificarei a minha Igreja; e a rocha era o próprio Cristo, filho de Deus.
Tanto esse grande e santo bispo não acreditava que a Igreja fosse edificada sobre Pedro, que disse em seu sermão no. 13: - Tu és Pedro, e sobre essa rocha ou pedra que me confessaste, que reconheceste, dizendo: Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo, edificarei a minha Igreja, sobre mim mesmo; pois sou o filho de Deus vivo. Edificarei sobre mim mesmo, e não sobre ti.
(...) Disse Monsenhor Dupanloup, nas suas célebres - Observações - sobre este Concílio do Vaticano, e com razão, que, se declaramos infalível a Pio IX, necessariamente precisamos sustentar que infalíveis também eram todos os seus antecessores. Porém, veneráveis irmãos, com a História na mão, eu vos provarei que alguns papas faliram. Passo a provar-vos, meus veneráveis irmãos, com os próprios livros existentes na biblioteca deste Vaticano, como é que faliram alguns dos papas que nos têm governado: O papa Marcelino entrou no templo de Vesta e ofereceu incenso à deusa do Paganismo. Foi, portanto, idólatra; ou, pior ainda: foi apóstata! Libório consentiu na condenação de Atanásio; depois, passou para o Arianismo. Honório aderiu ao Monoteísmo. Gregório I chamava Anticristo ao que se impunha como - Bispo Universal; e, entretanto, Bonifácio III conseguiu do parricida imperador Focas obter este título em 607. Pascoal II e Eugênio III autorizavam os duelos, condenados pelo Cristo; enquanto que Júlio II e Pio IV os proibiram. Adriano II, em 872, declarou válido o casamento civil; entretanto, Pio VII, em 1823, condenou-o. Xisto V publicou uma edição da Bíblia e, com uma bula, recomendou a sua leitura; e aquele Pio VII excomungou a edição. Clemente XIV aboliu a Companhia de Jesus, permitida por Paulo III; e o mesmo Pio VII a restabeleceu.
Porém, para que mais provas? Pois o nosso Santo Padre Pio IX não acaba de fazer a mesma coisa quando, na sua bula para os trabalhos deste Concílio, dá como revogado tudo quanto se tenha feito em contrário ao que aqui for determinado, ainda mesmo tratando-se de decisões dos seus antecessores?
(...) Como então se poderá dar-lhes a infalibilidade? Não sabeis que, fazendo infalíveis Sua Santidade, que presente se acha e me ouve, tereis que negar a sua falibilidade e a dos seus antecessores?
(...) Deveis saber que o papa João XII foi eleito com a idade de dezoito anos tão-somente; e que o seu antecessor era filho do Papa Sérgio com Marozzia.
Que Alexandre VI era, nem me atrevo a dizer o que ele era de Lucrécia; e que João XXII negou a imortalidade da alma, sendo desposto pelo Concílio de Constança.
Já nem falo dos cismas que tanto têm desonrado a Igreja. Volto, porém, a dizer-vos que, se decretais a infalibilidade do atual bispo de Roma, devereis decretar também a de todos os seus antecessores; mas, atrever-vos- eis a tanto? Sereis capazes de igualar a Deus todos os incestuosos, avaros, homicidas e simoníacos bispos de Roma?
Tal excrescência já não cabe em nossos dias, principalmente depois que o papa João Paulo II, através de sua última encíclica, Fides et Ratio, publicada em outubro de 1998, relevou a importância da ciência para a religião, e reconheceu que a Igreja errou durante os séculos passados ao obstruir o desenvolvimento das descobertas científicas. Chegou, inclusive, a afirmar que desprovida de razão a fé se arrisca a deixar de ser "uma proposição universal".