Uma coisa curiosa é que, seguindo exatamente o que está relatado na Bíblia, pode-se dizer que o primeiro homem foi hermafrodita. Em Gn 1, lemos: "E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher". (Gn 1,27).
Se Deus "o criou" não se pode depois dizer "os criou"; portanto, Adão era "macho e fêmea" ao mesmo tempo, ou seja, um ser hermafrodita, pois só posteriormente, num outro relato, é dito que Deus tira de uma de suas costelas para com ela modelar o elemento feminino, Eva, e só depois disso é que passa a existir a procriação dos seres humanos, tendo como base o casal Adão e Eva, tomando-se estritamente o que se encontra narrado na Bíblia.
Aliás, se Adão não fosse macho e fêmea não se poderia tirar dele a sua parte feminina (Eva), não é mesmo?
O dicionário Aurélio assim define o termo hermafrodita: “Adj.: Diz-se de indivíduo (animal ou planta) dotado de órgãos reprodutores dos dois sexos; bissexual”, ou seja, é-se macho e fêmea ao mesmo tempo.
Vejamos então como se passaram as coisas pelos relatos de Gn 2.
Depois de haver criado a terra e o céu (v. 4), Deus modela o homem com argila do solo, soprando-lhe nas narinas um sopro de vida, momento no qual o homem se tornou um ser vivente (v. 7). Feito isso Deus “planta um jardim”, em Éden, onde coloca o homem que havia modelado (v. 8). Segue criando todas as espécies de árvores, incluindo a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal, que foram colocadas no meio do jardim (v. 9); proíbe-lhe de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, dizendo-lhe que “o dia em que dela comer, com certeza você morrerá” (v. 17), o que nos leva a concluir que a morte já fazia parte do conhecimento de Adão, pois nenhuma explicação lhe foi dada a respeito do que seria morte.
Em certo momento, Deus percebe que o homem estava sozinho e que isso não era bom, resolve fazer para ele uma auxiliar (v. 18). Mas antes de realizar esse novo projeto Deus forma do solo da terra todas as feras e aves do céu, apresentando-as ao homem, que dá nome a cada uma delas. (v. 19). Foi neste momento que o homem se deu conta de que não havia ninguém que lhe fosse semelhante. (v. 20). Percebendo-lhe este sentimento, Deus o faz cair num torpor (v. 21), tomando-lhe de uma de suas costelas, com a qual modelou a mulher (v.22), razão pela qual Adão ao vê-la disse: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem!” (v. 23). Embora não tenhamos entendido o porquê dele ter dito isso já que estava dormindo e não viu de onde Eva tinha saído, esse fato reforça a ideia de que Adão viveu sozinho por algum tempo; portanto, ele foi mesmo um hermafrodita, uma vez que Eva foi criada num outro momento que não o dia em que ele se tornou um ser vivente.
Deve ter ficado muito feliz e a “conhece”, do que resultou o nascimento de Caim. E certamente gostou de “conhecer” Eva, pois repete a “dose”, daí surgindo Abel (Gn 4,1-2).
Esses dois irmãos, depois de crescidos, foram personagens do primeiro ato no qual um ser humano morre. É também o primeiro fratricídio registrado na Bíblia; o primogênito, por inveja, mata o caçula, supondo que as ofertas deste eram mais agradáveis a Deus do que as suas (Gn4,3-8).
Diante de tal barbaridade não restou alternativa a Deus senão expulsá-lo daquela região; cabeça baixa, toma Caim a direção de Nod, a leste do Éden. No caminho encontra uma mulher. Mulher??? Como, se, até aí, pelos relatos bíblicos, só existiam ele e seus pais?! Na sequência, ele a toma por “sua mulher”, com a qual tem um filho dando-lhe o nome de Henoc.
Fato extraordinário é que, pouco depois, Caim funda uma cidade, batizando-a com o nome do filho. Certamente que, para se fundar uma cidade, há necessidade de se ter mais pessoas do que somente um casal para nela habitarem, razão pela qual tem que ser adotada uma das seguintes hipóteses:
1) até Deus criar Eva, Adão, como hermafrodita, teve a sua própria prole; ou
2) ele não formou com Eva o primeiro casal humano.
A opção pela “1” nos levará à conclusão de que, no inicio, a reprodução humana foi por auto fecundação ou, auto geração. Já pela “2”, a história da criação de Adão e Eva passa a ter um caráter meramente alegórico.
Assim, qual das duas é a mais assimilável em termos de lógica? Que nos respondam os teólogos entendidos no assunto. Claro, que com argumentos sólidos e não com o famoso chavão “mistérios de Deus”...
Cremos que a segunda opção fica altamente provável, caso os argumentos de Kardec em o livro A Gênese (capítulo XV – Perda do paraíso) sejam válidos, uma vez que existe lógica neles; e, especialmente, pela nota que ele coloca logo após, estando ela correta:
Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta consequência, tirada do texto mesmo da Gênese: Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero humano.
(Cap. XI, nº 34.) (1).
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(1) Não é nova esta ideia. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete, em seu livro Preadamitas, escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão e essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.
(KARDEC, 1995, p. 257-258). (grifo nosso).
A informação de que o “texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções” tinha provas de que Adão e Eva não foram o primeiro casal, porquanto nele tinha-se a informação de que a Terra já era habitada antes deles virem a luz do mundo, só vem confirmar o que muitos estudiosos dizem a respeito de que os textos bíblicos já não mais refletem os textos ditos originais, contrariamente ao que se apregoa por aí.
Que seremos contestados é um fato, porquanto justificarão que o “homem” citado em Gn 1,27, representa a humanidade. Pode até ser, dependendo da tradução. Se alguém nos perguntar: “como assim?” respondemos, citando Gn 5,1-2: “Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados”.
Observe, caro leitor, que diz Deus “criou o homem... e chamou pelo nome de Adão”, óbvio, portanto, tratar-se do homem e não do ser humano. Algumas traduções (de 1 a 6, da lista abaixo) querendo fugir da verdade, de que Adão foi criado macho e fêmea, ao invés de “chamou pelo nome de Adão” colocam “chamou pelo nome de homem”, em flagrante desarmonia com o que se quer dizer na frase. Aqui também vemos o mesmo problema com o artigo, que deveria ser no singular, mas todos constam no plural: “...os criou, e os abençoou, e lhes...”. Isso também aconteceu em Gn 1,28; porém, por lógica, os dois textos bíblicos deveriam estar dessa forma:
"E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e o criou homem e mulher". (Gn 1,27).
“Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher o criou, e o abençoou, e lhe chamou pelo nome de Adão, no dia em que foi criado”. (Gn 5,1-2).
Como vimos Deus fez surgir Eva da costela de Adão; isso, na verdade, trata-se de um mito comum do “um” que se tornou “dois”, conforme lemos em Campbell: O mais conhecido exemplo ocidental dessa imagem do primeiro ser, dividido em dois, que parece ser dois mais é de fato um, está no Livro do Gênese, segundo capítulo, orientado porém em outra direção. Pois o casal é dividido ali por um ser superior que, como nos contam, fez com que o homem caísse em profundo sono e, enquanto ele dormia, tirou uma de suas costelas. (Gênese 2:21-22). Na versão indiana é o próprio deus que se divide e se torna não apenas homem, mas toda a criação; de maneira que tudo é manifestação daquela única substância divina onipresente: não há outro. Na Bíblia, entretanto, Deus e homem, desde o início, são distintos. De fato, o homem é feito à imagem de Deus e o sopro de Deus foi insuflado em suas narinas; mas seu ser, seu Si-Próprio, não é o de Deus, nem tampouco é uno com o universo. A criação do mundo, dos animais e de Adão (que então se tornou Adão e Eva), foi realizada não dentro da esfera da divindade, mas fora dela. Há, consequentemente, uma separação intrínseca e não apenas formal. […] (CAMPBELL, 1994, p. 18-19) (grifo nosso).
É como disse o Eclesiastes: “nada há de novo debaixo do sol” (Ecl 1,9).
Paulo da Silva Neto Sobrinho
Mar/2009
Referências bibliográficas:
(01) Bíblia Sagrada, 68ª edição, São Paulo: Ave Maria, 1989.
(02) Bíblia Sagrada, 8ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
(03) Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada, São Paulo: Paulus, 2002.
(04) Bíblia do Peregrino, edição brasileira, São Paulo: Paulus, 2002.
(05) Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. 43ª impressão. São Paulo: Paulus, 2001.
(06) Escrituras Sagradas, Tradução do Novo Mundo das. Cesário Lange, SP: STVBT, 1986.
A Bíblia Anotada, 8ª edição, São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
Bíblia Sagrada, 37ª edição, São Paulo: Paulinas, 1980.
Bíblia Sagrada, 9ª edição, São Paulo: Paulinas, 1957.
Bíblia Sagrada, 5ª edição, Aparecida-SP: Santuário, 1984.
Bíblia Sagrada, Edição Barsa, s/ed. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1965.
Bíblia Sagrada, Edição Revista e corrigida, Brasília, DF: SBB, 1969.
Bíblia Sagrada – SBTB. s/ed. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 1994.
CHAMPBELL, J. As máscaras de Deus. São Paulo, Palas Athena, 1994.
KARDEC, A. A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 1995