Vamos procurar, nos textos bíblicos, o significado para o termo arrebatar; um deles é com o sentido de morrer; vejamos:
Sl 102,25: “Então eu disse: 'Meu Deus, não me arrebates na metade dos meus dias'. Teus anos duram gerações de gerações”.
Sb 14,15: “Um pai, atormentado por um luto prematuro, manda fazer uma imagem do filho tão cedo arrebatado. Agora honra como deus aquele que antes era apenas um homem morto, e transmite para as pessoas de sua casa ritos secretos e cerimônias”.
Podemos, também, nessas passagens acima, usar o vocábulo levar, desde que este tenha o mesmo significado, qual seja, o de morrer.
Temos relatos onde um espírito é quem faz o arrebatamento:
Ez 3,14: “O espírito me ergueu e me arrebatou. Eu fui amargurado e irritado, pois a mão de Javé pesava sobre mim.”
Ez 43,5: “Então o espírito me arrebatou e levou para o pátio interno:...”
At 8,39: “...o Espírito arrebatou Filipe, e o eunuco não o viu mais... foi parar em Azoto;...”
Encontramos também, em algumas traduções bíblicas, as expressões “ergueu e me levou”, “me transportou e me levou” e “me levantou, e me levou” para o passo Ez 3,14 e “ergueu-me e trouxe-me”, “levou-me e transportou-me” e “levantou-me e me levou” para Ez 43,5, isso nos leva a concluir que arrebatar também tem os significados aqui citados. Em At 8,39 é usado somente arrebatou.
O que poderíamos entender dessas passagens? Seria, talvez, um fenômeno de transporte, considerando que os envolvidos foram corporalmente parar num outro lugar? Embora seja um fenômeno extraordinário demais, ele é o mais provável para explicar o acontecido, tomando-se os relatos como verdadeiros.
Não seria isso o que aconteceu com Elias? Ora, pelo que percebemos tal ocorrência não era totalmente estranha aos que o conheciam. Leiamos:
1Rs 18,11-12: “E agora, o senhor me manda dizer ao meu patrão que Elias está aqui?! Quando eu sair daqui, o espírito de Javé transportará o senhor não sei para onde. Eu irei informar Acab, e ele, não o encontrando, me matará. E seu servo teme a Javé desde a juventude”.
Explicam-nos os tradutores da Bíblia de Jerusalém: “Esses desaparecimentos repentinos parecem ter sido um dos traços da história de Elias (2Rs 2,16) até o seu arrebatamento definitivo (2Rs 2,11s)”. (BJ, p. 497). Com isso poderemos entender o porquê de os irmãos profetas, que moravam em Betel e os que moravam em Jericó, terem dito a Eliseu: "Você está sabendo que Javé hoje mesmo vai levar embora seu mestre, nos ares, por cima da sua cabeça?" (2Rs 2,3.5), obtendo dele a resposta: “Claro que eu sei. Mas fiquem quietos” (2Rs 2,3.5). Ou seja, todo mundo já sabia o que ia acontecer a Elias.
Podemos, ainda, ver a tranqüilidade com que Elias via essa questão, não ficando temeroso em relação ao seu iminente “arrebatamento”, inclusive, dizendo a Eliseu que ele poderia lhe pedir o que quisesse antes que ele fosse arrebatado (2Rs 2,8). E, na seqüência, ele, Elias, subiu ao céu no redemoinho, após o aparecimento de um carro de fogo com cavalos de fogo que o separou de Eliseu (2Rs 2,11). Os cinqüenta profetas que estavam acompanhando o desenrolar dos fatos (2Rs 2,7), se propuseram a enviar alguns homens valentes para procurar Elias, dizendo: “Talvez o espírito de Javé o tenha arrebatado e jogado sobre algum monte ou dentro de algum vale” (2Rs 2,16). Só que Eliseu, retrucou: “Não mandem ninguém” (2Rs 2,16). A questão é: se pensassem mesmo que Elias tivesse ido literalmente para o céu, essa idéia de procurá-lo não faz o menor sentido. O fato de Eliseu não ter concordado, talvez, se explique que ele não fazia questão de que achassem Elias, porquanto, ele, como seu discípulo, é quem iria substitui-lo no cargo de “profeta oficial”, vamos assim dizer.
Então, Elias poderia ter sido levado (arrebatado) para um outro lugar? É provável, pois em 2Cr 21,12-15 está narrado que depois desse episódio com Elias, Jeorão (sua forma abreviada é Jorão), rei de Judá, recebeu uma carta dele. O escritor Paulo Finotti, em seu livro Ressurreição, informa-nos sobre isso: “Assim, quando Jeorão, rei de Judá, começou a reinar, já havia ocorrido o que está escrito em II Reis 2:11,12, e se Elias ainda podia enviar uma carta ao rei Jeorão é porque, após a sua “ascensão”, continuava aqui na terra profetizando para o reino de Judá. (FINOTTI, 1971, p. 26-27).
Realmente, segundo a citada narrativa bíblica (2Cr 21,12-15), Elias, depois de ter sido supostamente arrebatado aos céus, enviou mesmo uma carta a Jeorão, filho e sucessor de Josafá, de Judá. O que pode ser corroborado com os tradutores da Bíblia de Jerusalém, que afirmam:“De acordo com a cronologia de 2Rs, Elias tinha desaparecido antes do reinado de Jorão de Israel (2Rs 2; 3,1) e, portanto, antes de Jorão de Judá (2Rs 8,16; cf. no entanto 2Rs 1,17). O cronista deve utilizar uma tradição apócrifa”. (p. 607).
Sem levarmos em consideração que Jesus disse que “o reino dos céus está dentro de vós” (Lc 17,21) e acreditando nesse arrebatamento como se Elias tivesse ido para o céu, fica-nos uma interrogação: por qual privilégio isso aconteceu, pois até mesmo Jesus passou pela experiência da morte? E se “Elias era homem fraco como nós” (Tg 5,17) e que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34), então, disso concluímos, que não havia a menor possibilidade dele receber qualquer tipo de tratamento especial.
Temos mais duas passagens; entretanto são um tanto quanto problemáticas. A primeira é a do livro de Ezequiel:
Ez 8,1-3: “No dia cinco do sexto mês do ano seis, eu estava sentado em casa, com os anciãos de Judá sentados em minha presença, quando sobre mim pousou a mão do Senhor Javé. Tive nesse momento uma visão: era uma figura com aparência de homem... Ele estendeu uma espécie de mão e me pegou pelos cabelos. O espírito me carregou entre o céu e a terra e, em visões divinas, levou-me a Jerusalém, até o lado de dentro da porta que dá para o norte, lá onde estava a imagem que tanto provocava o ciúme.”
Tudo nos leva a crer que, em princípio, trata-se de um desdobramento, ou seja, o espírito do profeta se desliga do corpo e é levado por um anjo até Jerusalém, onde vê os acontecimentos. Alguns tradutores bíblicos têm o fenômeno como vidência (Bíblia Sagrada Paulinas, p. 928 e Bíblia Sagrada Vozes, p. 1040). Na Shedd, encontramos, a explicação para “em visões de Deus”, expressão citada em Ez 8,3:
Esta frase põe fim ao debate sobre como Ezequiel podia ter sido transportado para Jerusalém e responde às teorias que dizem que o profeta nunca foi para a Babilônia, mas, sim, estava vendo os acontecimentos em Jerusalém e profetizando para os cativos na Babilônia. Trata-se de visões, da qualidade de vidência, coisa que sempre existiu entre os orientais, e já que são visões que vieram diretamente de Deus, é claro que o profeta sentira que foi uma situação verídica, de acontecimentos atuais em Judá. (p. 1160-1161).
Com isso acabamos por ficar na dúvida em relação ao acontecido com Ezequiel, se temos um fenômeno de desdobramento ou uma vidência à distância (clarividência), pois as duas situações poderiam explicá-lo.
A outra vamos encontrá-la no capítulo 14 do livro de Daniel, que, juntamente com o 13, não faz parte das bíblias protestantes, somente das de cunho católico. Segundo pudemos constatar esses dois capítulos são adições gregas (Bíblia de Jerusalém, p. 1579). Dito, isso, leiamos:
Dn 14,33-39: “Na Judéia vivia o profeta Habacuc. Ele fez um cozido, partiu uns pães numa gamela e ia saindo para a roça, a fim de levar essa comida para os trabalhadores. O anjo do Senhor disse a Habacuc: "Esse almoço que você tem aí leve para Daniel, lá na Babilônia, na cova dos leões". Habacuc disse: "Meu senhor, eu nunca vi a Babilônia, nem conheço essa cova!" O anjo do Senhor pegou-o pelo alto da cabeça, carregou-o pelos cabelos e, com a rapidez do vento, colocou-o à beira da cova. Habacuc gritou: "Daniel, Daniel! Pegue o almoço que Deus lhe mandou". Daniel disse: "Tu te lembraste de mim, ó Deus, e nunca abandonas aqueles que te amam". Então Daniel pegou o almoço e comeu. Imediatamente o anjo do Senhor colocou Habacuc de novo no mesmo lugar onde estava antes”.
Sobre Habacuc temos: “Nada sabemos desta personagem, a não ser uma referência legendária em Dn 14,33-39” (MONLOUBOU e DU BUIT, 1997, p. 336). Portanto, podemos concluir que a referência a ele nessa passagem é lenda pura. Não bastasse isso, ainda temos sérios problemas com o outro personagem da história. Enquanto alguns datam que Daniel tenha vivido próximo do ano 605 a.C., os acontecimentos relatados em Daniel, fora a primeira parte (caps. 1-6) teriam ocorrido na época de Antíoco Epífanes, ou seja, entre 167 a 164 a.C., o que nos dá uma longevidade extraordinária ao profeta Daniel. A coisa é tão alarmante que até tradutores bíblicos questionam sobre a realidade dos fatos narrados no livro que leva esse nome:
O livro divide-se em duas partes distintas: cc. 1-6, onde se narra a vida de Daniel na corte da Sabilônia, e cc. 7-12 que contém quatro visões sobre a derrocada dos reinos terrestres e a implantação final do reino de Deus. O livro termina com os cc. 13-14 (apenas na versão grega) que relatam as histórias de Susana, dos sacerdotes de Bel e do dragão.
A situação histórica coloca o nosso Daniel no reinado do Antíoco IV Epífanes, que determinou o extermínio da religião judaica e a consecutiva helenização da Palestina. O autor do livro de Daniel (a nós desconhecido) serve-se de histórias antigas, segundo o gênero agádico, então muito em voga (cc. 1-6; 13-14), para inculcar esperança e fé aos judeus perseguidos por Antíoco IV. Assim como Deus protegeu Daniel e os seus companheiros de todos os perigos, assim acontecerá com os judeus que forem fiéis à Lei e às tradições religiosas. O autor não tem em vista escrever fatos históricos, mas histórias moralizadoras, que poderiam, na realidade, ter um fundo ou um núcleo histórico, mas de segunda importância, Os dados internos do livro, lingüístico, histórico e teológico obrigam-nos a datar o livro por altura da morte do rei Antíoco IV (165-164 a.C.). Os cc. 7-12 são do gênero apocalíptico, muito diferentes, portanto, da tradição profética. Os apocalipses, cuja característica é a pseudonímia, nascem nesta altura e prolongam-se até aos sécs. II-III d.C. Ao longo do livro daremos as diversas explicações nas notas respectivas, quer sobre problemas de gênero literário, histórico, problemas lingüísticos, de canonicidade etc. (Bíblia Sagrada - Santuário, p. 1313). (grifo nosso)
Com esses dois problemas, ou seja, que Habacuc e Daniel tenham vivido na época de Antíoco IV, o relato do livro não deve ser tomado à conta de uma realidade objetiva:
Os principais recursos do gênero e do livro são a ficção narrativa e a alegoria. O autor conhece o passado em grandes linhas, estiliza-o e conta-o como profecia. Para isso, inventa um personagem passado, a quem dá um nome ilustre, pondo-lhe na boca a história passada como profecia do futuro. A ficção é basicamente uma inversão de perspectiva. Outros recursos narrativos envolvem a ficção. (Bíblia Sagrada do Peregrino, p. 2126).
Não podemos deixar de citar a passagem na qual relata-se a tentação de Jesus. Transcrevemo-la nas versões de cada um dos evangelistas:
Mt 4,1-2.5.8.11: “Então o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu fome.
Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo.
O diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e suas riquezas.
Então o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e serviram a Jesus”.
Mc 1,12-13: “Em seguida o Espírito impeliu Jesus para o deserto. E Jesus ficou no deserto durante quarenta dias, e aí era tentado por Satanás. Jesus vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam”.
Lc 4,1-2.5.9: “Repleto do Espírito Santo, Jesus voltou do rio Jordão, e era conduzido pelo Espírito através do deserto. Aí ele foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada nesses dias e, depois disso, sentiu fome.
O diabo levou Jesus para o alto. Mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo.
Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: "Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo”.
Esse acontecimento está narrado após o batismo de Jesus. Entretanto João Evangelista, que, apesar de também mencioná-lo, não fala absolutamente nada sobre esse episódio da tentação, que não conseguimos decifrar se foi só um fato isolado ou se Jesus foi tentado durante os quarenta dias, visto os textos se conflitarem nesse ponto.
A idéia que se tem é que, após receber o Espírito Santo, Jesus foi por ele levado ao deserto para ser tentado, fato que julgamos totalmente estranho; diríamos, até, “mui amigo” quem o levou. Uma coisa que quase ninguém fala é da impossibilidade de Jesus ter sido tentado, caso seja ele a própria divindade, pois está escrito: “Deus não pode ser tentado pelo mal” (Tg 1,13). Por outro lado, mesmo sem o considerar assim, parece-me que não se leva em conta que os demônios sabiam de sua origem; então, como poderiam afrontá-lo? Diante dele o que normalmente acontecia era: “De muitas pessoas também saíram demônios, gritando: 'Tu és o Filho de Deus'. Jesus os ameaçava, e não os deixava falar, porque os demônios sabiam que ele era o Messias” (Lc 4,40-41).
Há ainda mais uma situação de arrebatamento: essa acontecida com Paulo, o apóstolo dos gentios, que assim a descreveu:
“Conheço um homem em Cristo, que há catorze anos foi arrebatado ao terceiro céu. Se estava em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe. Sei apenas que esse homem - se no corpo ou fora do corpo não sei; Deus o sabe! foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não são permitidas ao homem repetir” (2Cor 12,2-4).
Pelo que conhecemos dos fenômenos mediúnicos, certamente poderemos classificar essa ocorrência com Paulo como sendo o da emancipação de sua alma, comumente chamada de desdobramento. O espírito se desliga temporariamente do corpo e vai para um outro lugar, que lhe atrai ou no qual tenha uma tarefa a fazer, podendo, inclusive, adquirir novos conhecimentos ou receber instruções daqueles que se encontram no plano espiritual.
Diante da ignorância dos fatos, para os quais não tinham explicação diante de seus conhecimentos, buscaram arrimo no “poder” de Deus, levando-os à conta de milagres, não tendo, em razão disso, outra justificativa a não ser reputá-los como sobrenaturais. Assim, passou-se a considerar o arrebatamento de Elias como sendo um fenômeno de ordem sobrenatural, pelo qual, ele, de corpo e alma, teria sido literalmente levado para o céu, apesar disso contrariar os passos: “a carne e o sangue não podem herdar o reino dos céus” (1Cor 15,50) e “o reino dos céus está dentro de vós” (Lc 17,21), como também não se compatibilizar com “o Espírito é que dá vida, a carne não serve para nada” (Jo 6,63). O que se fará com ela, a carne, numa dimensão espiritual, onde até o próprio “Deus é Espírito” (Jo 4,24)? E não vale o chavão: “mistérios de Deus”!
Supondo-se tal fato verdadeiro, Elias somente poderia ter sido transportado a um outro a um outro local aqui na Terra, como entenderam os filhos dos profetas, conforme consta de 2Rs 2,16; caso contrário seria a outro mundo igual ao nosso, pois teria que continuar vivendo da mesma forma que vivia aqui na Terra (alimentando, saciando a sua sede, respirando, dormindo, etc), provando aí, então, a existência de outros mundos iguais ao planeta Terra, caso Deus não tenha criado um lugar só para Elias.
Referência bibliográfica:
Bíblia Anotada, versão Almeida, revista e atualizada. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia do Peregrino, edição brasileira. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia Sagrada, 37ª ed., São Paulo: Paulinas, 1980.
Bíblia Sagrada, 68ª ed. São Paulo: Ave Maria, 1989.
Bíblia Sagrada, 8ª ed., Petrópolis: Vozes, 1989.
Bíblia Sagrada, edição revista e corrigida. Brasília: SBB, 1969.
Bíblia Shedd, 2ª ed., São Paulo: Vida Nova; Barueri, SP: SBB, 2005.
FINOTTI, P. Ressurreição, São Paulo: Edigraf, 1972.
MONLOUBOU, L. e DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal. Petrópolis: Vozes; Aparecida, SP: Santuário, 1997.